Cópia: tempo perdido
Embora seja uma prática bastante comum nas salas de aula brasileiras, a cópia quase nunca faz sentido como um recurso didático
Iracy Paulina (novaescola@atleitor.com.br)
Certamente você conhece esta cena: ao propor que as crianças copiem determinado texto, elas torcem o nariz, reclamam e, preguiçosamente, começam a transcrever o conteúdo para o caderno.Antes de lamentar a apatia da turma ou simplesmente seguir em frente com esse tipo de proposta ignorando o mal-estar, é necessário analisar a situação a fundo, em busca dos resultados que ela realmente proporciona e das aprendizagens que se pretende alcançar. Depois de fazer isso, pode acreditar, a cópia será praticamente banida das salas de aula, principalmente nas turmas de alfabetização.
Já está mais do que comprovado que os alunos são levados desnecessariamente a copiar muita coisa por muitas horas. Ao pesquisar o motivo que fazia os estudantes cubanos terem desempenho melhor do que os de outros países latino-americanos, o economista americano Martin Carnoy comparou 36 escolas de Cuba, Chile e Brasil. Entre várias descobertas, ele verificou que o tempo usado para copiar em território brasileiro é três vezes maior do que o registrado nas salas de aula cubanas.
Copiar não ensina ninguém a ler e escrever.
"A cópia ocupa um lugar de destaque na prática dos alfabetizadores, mas na maioria dos casos é usada para fins que não contribuem para a aprendizagem e o avanço das crianças", afirma Najela Tavares Ujie, mestre em Educação e professora da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). Em 2006, ela coordenou uma pesquisa em que estudantes de Pedagogia acompanharam a rotina em sala de aula de 30 turmas de 1ª série em escolas públicas e privadas de Prudentópolis, a 204 quilômetros de Curitiba. Em apenas uma semana, eles se depararam com 215 propostas de cópia. Em 81% dos casos, a atividade estava relacionada à exercitação mecânica (visando o treino ortográfico para memorização e redução de erros), ao preenchimento de tempo (para punir as crianças e inibir conversas) e à reprodução no caderno dos exercícios apresentados no livro didático.
A presença dessa proposta antiquada é tão preocupante que também despertou a atenção, em 2008, de 3 mil universitários de 96 faculdades de Pedagogia e Letras participantes do programa Bolsa Alfabetização, em parceria com o programa Ler e Escrever, da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Os bolsistas atuavam juntamente com os professores titulares de turmas do 2º ano para desenvolver uma investigação didática relacionada às práticas escolares. "Eles rapidamente descobriram que o objetivo dos educadores era que as crianças aprendessem a ler e escrever copiando e que isso, obviamente, não ocorria. A atividade só servia mesmo para encher o caderno", conta Ellis França, professora da Faculdade Santa Marina. Outras percepções ficaram evidentes. Para os estudantes alfabéticos, a atividade era cansativa e sem sentido: eles não liam o que estavam copiando e cometiam muitos erros ortográficos, embora cumprissem a tarefa com rapidez. Para os não-alfabéticos, representava uma missão difícil de ser cumprida. "Eles copiavam letra por letra, pulavam palavras, perdiam a sequência do texto, demoravam muito e não conseguiam concluir. Tudo isso provocava muita frustração", explica Ellis. Por fim, ficou claro também que nem para a caligrafia a dita-cuja funciona. Segundo Marisa Garcia, doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e consultora do Programa Ler e Escrever/Bolsa Alfabetização, ao chegar ao fim da folha, o aspecto visual das letras está pior do que nas primeiras linhas.
Não basta ter propósito social. É preciso haver aprendizagem
Para que tenha alguma utilidade didática, a cópia tem de ser ressignificada pelos professores. "Ela tem sido considerada uma atividade com o poder de produzir escrita, mas copiar é transcrever, e não escrever", diz Marisa.
Copiar era uma prática social importante. Hoje em dia, não é mais.
A tarefa pode favorecer a aquisição do sistema de escrita, quando, por exemplo, se propõe à criança a cópia do título do livro que ela vai levar emprestado para ler em casa. O desafio consiste em localizar onde aparecem o título do livro e o nome do autor, o que se converte em uma desafiadora situação de leitura. Essa é uma ideia citada em La Lectura en la Alfabetización Inicial - Situaciones Didácticas en el Jardín y la Escuela, publicação argentina coordenada pelas educadoras Claudia Molinari e Mirta Castedo, que reúne ações implementadas por um programa de alfabetização inicial daquele país.
Para ter alguma utilidade pedagógica, tem de responder muito bem à pergunta "copiar por quê?". Em uma palestra organizada em 2009 pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, a educadora argentina Delia Lerner, da Universidade de Buenos Aires, sugeriu mais questões para potencializar a indagação. A cópia é ou era uma prática social importante? Quais são seus propósitos? Para que se copiava antigamente? E hoje em dia? Além disso, é essencial, conforme destaca Delia, levar em conta o tipo de relação que existe entre a forma como o ato de copiar é apresentado na escola e a maneira como existe fora dela, no dia a dia. "É papel da instituição formar pessoas que saibam fazer coisas úteis fora de sala de aula"(leia o quadro abaixo).
A cópia ao longo da história
Antes da invenção da tipografia, em 1449, pelo mestre gráfico alemão Johannes Gutenberg (1400-1468), a cópia era uma atividade imprescindível. Era graças aos manuscritos, feitos por monges e frades, chamados copistas ou escribas, que os livros se difundiam. "Se hoje conhecemos os escritos de grandes pensadores, como o filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), foi porque os copistas os conservaram", diz Terezinha Oliveira, da Universidade Estadual de Maringá (UEM). "Para isso, eles não precisavam ser necessariamente grandes leitores. Ainda assim, eram considerados artistas, pois para os homens medievais a preservação do livro era vital para difundir o conhecimento e a sabedoria." Tal ofício, como relatam os historiadores Guglielmo Cavallo e Roger Chartier no livroHistória da Leitura no Mundo Ocidental, era extenuante. O escriba lia em voz alta o texto para ativar a memória imediata, enquanto transcrevia. Por volta do século 13, começaram a surgir equipamentos e móveis feitos para ajudá-los a reproduzir as páginas dos livros de maneira mais mecânica, sem terem de recorrer à leitura em voz alta. "Iluminuras e gravuras de madeira, mostrando scriptoria da fase medieval tardia, mostram copistas com a boca fechada, sentados em mesas equipadas com apoios para livros e utilizando uma variedade de novos marcadores de linha operados mecanicamente para guiar os olhos na ação de seguir o texto a ser copiado", descreve o livro.
Hoje, é possível copiar uma frase ou um texto inteiro com o computador ou com fotocopiadoras em segundos. "Não sei se os professores, quando pedem às crianças que copiem algo, têm consciência do que estão fazendo. Copiar é um esforço grande e não está claro que, como prática social, seja necessário nos dias de hoje", observa a educadora argentina Delia Lerner.
Um segundo grupo de questionamentos que deve ser feito tem a ver com a análise do ensino dessa prática. Nesse sentido, é importante que o professor se pergunte: como funciona a cópia na escola? Em que situações didáticas é proposta? Por quê? Ela aparece isolada ou relacionada a outras atividades? Como as crianças copiam? Afinal é fundamental também fazer com que o ato de copiar seja significativo para os estudantes. Em geral, imagina-se que basta propor que eles copiem coisas como letras de música, lista de telefones dos colegas e receitas para serem consultadas depois. No entanto, não se trata disso. "É preciso entender que nesse processo é imprescindível haver alguma aprendizagem", diz Delia.
Um bom exemplo do emprego dessa estratégia é apresentado pela educadora argentina Ana Teberosky no artigo A Intervenção Pedagógica e a Compreensão da Língua Escrita. A autora conta que uma professora de um grupo de crianças de 5 anos de uma escola de Barcelona, na Espanha, articulava ditado, leitura, cópia e escrita em uma só atividade, pedindo que os pequenos ditassem a história em que estavam trabalhando para que ela a escrevesse no quadro, deixando claro que registraria tudo o que fosse dito. Eles ditavam alguns trechos enquanto conversavam entre si e faziam comentários. Assim, ela anotou: "As sete cabrinhas era uma vez uma mãe ai que comprido a mãe foi embora". Quando leu em voz alta, todos protestaram, dizendo que havia palavras a mais, que não faziam parte da história. Então, ela solicitou que fosse indicado o que deveria ser apagado e isso era feito enquanto relia o trecho. Ao fim da atividade, pediu às crianças para copiar do quadro o texto que haviam ditado, já com as correções feitas, para que continuassem trabalhando na aula seguinte. Nessa situação, a cópia tem razão de ser porque conserva um fragmento de uma história que vai ser retomada em outra ocasião e o texto que foi copiado é conhecido - as próprias crianças o produziram. Essas são duas condições imprescindíveis para a cópia ter algum sentido na perspectiva da alfabetização inicial, além de, é claro, estar explícito que todos estão copiando para determinado fim e não só porque a professora quis que copiassem. Nesse mesmo estudo, Ana também percebeu que muitos alunos copiavam o texto dos colegas mais próximos em vez de reproduzir o que estava no quadro. Fazem isso porque o caderno está mais próximo do que o quadro - uma atitude que, de acordo com Delia, tem um paralelo com os equipamentos criados para os copistas da Idade Média para minimizar o grau de deslocamento ocular entre o original e a cópia.
Quer saber mais?
CONTATOS
BIBLIOGRAFIA
História da Leitura no Mundo Ocidental - Volume 1, Guglielmo Cavallo e Roger Chartier, 232 págs., Ed. Ática, tel. 0800-115-152, edição esgotada
INTERNET
Publicação La Lectura en la Alfabetización Inicial - Situaciones Didácticas en el Jardín y la Escuela (em espanhol)
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